20 de jul. de 2011

Hermeto, músico-artífice

Para escrever sobre o show de Hermeto Pascoal, seu grupo e convidados, o jeito é ir comentando cada coisa.
Começamos ouvindo sons de canos de metal, vindos do chão do teatro. Depois, já em cima do palco, enquanto os instrumentistas levavam um jazz, o som tinha a participação de uma espécie de barraca de instrumentos-bugiganga, uma parafernália que ia de ferramentas a coisas indecifráveis. Hermeto tocou uma chaleira. Tudo exercitando a idéia de que tudo pode ser instrumento e que de tudo se pode extrair musica...

O velho e bom gogó, ao invés de apenas executar canções ou peças operísticas, tornava-se, também, instrumento musical, em duelo-complemento com o sax ou o piano. Aline Moreno abria a porteira de seu instrumento de cordas vocais, e mostrava ao público que a música também grita de modo estridente, presente, penetrante. Por outro lado, Hermeto tocava um órgão que dizia estar curando de um resfriado, como se na interação musical o instrumento tivesse necessidades e vaidades.

A interação com o público também é diferente. Em vários momentos, Hermeto agradeceu a receptividade da platéia, com gritos e um especial “amo vocês”, bem diferente de qualquer demagogia, e que se poderia traduzir por uma energia necessária, que sem ela paralisariam-se todos os instrumentistas e ele próprio. Hermeto precisa do público receptivo-ativo e, pensando bem, isso tem tudo a ver. Afinal, sua oficina de música ao vivo é uma artesania feita para interagir.
Andando pelo palco, Hermeto solta gritos, gesticula com as mãos, distribui a ordem de prioridades, conversa... Não é como um maestro no comando ritual da orquestra, parece mais aqueles jogadores de futebol que armam as jogadas, fazem a distribuição da bola, dão lindos e surpreendentes toques, conversam com os parceiros e estabelecem a cadência do jogo, como foi Pelé. Aliás, como Pelé, ele é único, fato admitido por Dominguinhos, Caetano e tantos outros.

Dizia Hermeto, “Ninguém tem que tocar do mesmo jeito, nem dar bom dia do mesmo jeito”. Ou, em outro momento “baterista desgraçado”, para expressar o talento que não adianta definir com teses. Depois regeu o público, mostrando a voz musical coletiva para a platéia, a partir dela mesma.

Como compreender Hermeto? Me vem à cabeça o escritor Manoel de Barros, em seu poema “Uma Didática da Invenção”, onde, depois de listar conselhos, conclui com um que sintetiza tudo: “desaprender 8 horas por dia ensina os princípios”. Precisamos desaprender os códigos e ritos estabelecidos para de novo entender a musicalidade, a voz-música que se pode extrair da vida. O que nos disse Hermeto sobre si mesmo? Que desejava esvanecer-se em música até sobrar um corpo pétala, que flutuasse embora. Vamos embora sem prestar atenção nisso nos dias que se seguirão?

Obs.: Prestemos atenção, também, nele ter dito que este é o melhor festival do mundo. É controverso, mas do ponto de vista do calor humano que emana daqui, tem tudo a ver...
Texto: Valdir Grandini.
Fotos: Renato Seixas.

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